22
de janeiro
3º
Domingo após Epifania
Sl 27.1-9; Is 9.1-4; 1Co 1.10-18; Mt 4.12-25
Tema: Um menino nos nasceu!
Sermão pregado em 26 de
dezembro de 1531 pelo Reformador Martinho Lutero para o dia de Santo
Estevão, Mártir.
Voltemos agora as palavras
de Isaías com as quais podemos descobrir quem é a verdadeira igreja e como a
mesma é consolada.
1 - A diferença entre o reino espiritual de Cristo e os reinos deste mundo.
O profeta nos diz: “Um menino nos nasceu, um filho nos é dado”. Já ouvistes o que significam essas palavras. Esse capítulo é na verdade um
capítulo de inestimável valor, em que Isaías nos descreve com palavras
sumamente belas e acertadas que classe de criança é Cristo. É a criança
que nos leva sobre seus ombros a ti e a mim com todos os nossos pecados,
misérias e dores. E isto fez não somente quando viveu na terra, senão que segue
fazendo até o dia de hoje por meio da palavra do evangelho. Com o que Isaías
nos disse sobre o menino Jesus, nos ensina ao mesmo tempo a discernir
corretamente entre o reino espiritual e corporal. O reino corporal é aquele em
que somos os súditos, os que têm que levar o rei a soberano, por que o mundo
precisa de quem o aperte e o obrigue. O reino espiritual ao contrário é aquele em
que o rei mesmo nos leva. Há, pois, uma grandíssima diferença entre esses dois
reinos: no reino corporal, muitos milhares de homens levam uma só cabeça, um
soberano; mas no reino espiritual, uma só cabeça, Cristo, leva um número
incontável de homens. Certamente, ele leva os pecados do mundo inteiro, como disse
Isaías (53:6): “O Senhor carregou nele o pecado
de todos nós”; e o mesmo afirma São João
Batista (João 1:29): “Eis aqui o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo”. Lá na
cruz ele levou nossos pecados, leva-os ainda hoje mediante seu Espírito de
bondade, e nos faz pregar que ele é o Rei da misericórdia. Isso é uma parte da
profecia.
2. A assombrosa imagem da igreja: desprezível diante do mundo, santa
diante de Deus por Cristo.
Seguem agora os homens: “Admirável, Conselheiro, Deus forte. Pai eterno. Príncipe da Paz”. Com esses nomes, o profeta descreve em detalhe a índole do
reino em si. Até agora havia retratado a pessoa do soberano como um rei que
leva o reino sobre seus ombros. Aqueles nomes nos ensinam como está formada e
que sinais particulares tem a igreja cristã. Se queres retratá-la, retrata-a
como igreja que tem que ser levada e como igreja que é levada por Cristo. Esse
levar, porém, por parte de Cristo, e esse “ser levado” por parte da igreja, fazem que o
nome e o ofício de Cristo sejam o de Admirável, Conselheiro. “Admirável, Conselheiro” se chama também
pela obra que ele leva a cabo em sua santa igreja cristã, a qual Ele governa de
tal maneira que nenhuma razão humana pode compreender ou notar que essa igreja
é verdadeiramente a igreja cristã. Não estabelece para ela residência oficial,
não lhe fixa modos de proceder nem ritos, não lhe outorga traços distintivos
externos alguns que permitam determinar com precisão onde está a igreja, quão
grande ou quão pequena é. Se quiseres achá-la, não a encontrarás em nenhum
outro lugar senão sobre os ombros de Cristo. Se queres imaginá-la, tens que
fechar e prescindir de todos os demais sentidos e atender exclusivamente a
descrição que te dá aqui o profeta. A igreja é, na verdade, um reino admirável,
um reino que causa assombro, ou seja, um povo desprezível diante dos olhos do
mundo, do diabo, e diante de si mesmo, um “opróbrio dos homens e desprezado do povo”,
como diz o Salmo 22:6, uma “pedra rejeitada pelos
edificadores”, como diz Mateus 21:42,
porque tem um aspecto como se fosse não a esposa do Rei celestial senão do
diabo. A verdadeira igreja cristã é na opinião do mundo um conjunto de hereges.
Esse é o nome que a define. O inverso, os que são seguidores do diabo, esses
levam o nome de “igreja”. Assim como os turcos consideram os cristãos como gente
extremante insensata e diabos em pessoa, assim também os judeus e os papistas
de hoje em dia não têm mais que burlas para os que constituem a igreja de
Cristo. Tal é assim que a igreja não tem o aspecto, nome, imagem e semelhança
de ser a igreja de Deus, senão do
diabo.
Agora bem: se esse aspecto
tivesse a igreja apenas diante do mundo e do diabo, seria ainda tolerável, mas
o que é verdadeiramente grave é que esse mesmo aspecto nós temos diante dos nossos
próprios olhos. Essa é uma arte que o diabo domina com perfeição: o apartar nossos
olhos totalmente do batismo, do sacramento e da palavra de Cristo, de modo que
um tortura a si mesmo com o pensamento que expressara Davi (no Salmo 31:22): “Dizia eu em minha pressa: Cortado sou diante de teus olhos”. Este é nosso
distintivo: que a
igreja cristã deve ter aos seus próprios olhos – e eu diante de mim mesmo – uma
aparência como se Cristo nunca nos houvesse conhecido como seus. Devo
saber que essa é a santa igreja cristã, e que eu sou um cristão, e sem dúvidas,
devo ver ao mesmo tempo que tanto a igreja como eu estamos cobertos por uma
grossa capa de opróbrio do mundo que nos apelida de heréticos. Mais ainda: devo
ouvir o que meu próprio coração me diz: Tu és um pecador. Estas grossas capas,
o pecado, o diabo e o mundo cobrem de tal maneira a igreja e o cristão, que já
não fica nada visível deles; o único que se vê é pecado e morte, o único que se
ouve são as blasfêmias do mundo e do diabo. O mundo inteiro e quantos nele se
orgulham de sábios, se põem contra mim, minha própria razão rompe as relações
comigo; e não obstante, devo manter com todo firmeza: eu sou cristão, e com
tal, justo e santo. Portanto, a santidade da igreja e a minha santidade provém
da fé. Embasam-se não em algo dentro de nós mesmos, senão exclusivamente em
Cristo. Diga a igreja: “Eu sei que sou pecadora”, e
confie-se jazer por inteira no cárcere do pecado e no perigo de morte. “Em mim não há mais
que iniquidade, em Cristo não há mais que justiça; e se eu creio em Cristo, Sua
justiça chega a ser minha justiça”. Isso
excede toda razão e sabedoria humanas. Parece ser algo totalmente inaceitável.
Pois todos os entendidos dizem: a justiça é certa qualidade ou santa maneira de
ser no homem mesmo. Assim como a cor branca e negra estão na parede mesma ou no
pano mesmo, assim a santidade deve estar na alma mesma do homem justo. Mas
então vem meu próprio coração e me diz: eu não sou assim, não sou um santo. E o
mesmo me diz Satanás e o mundo. Se tenho contra mim as declarações do mundo, de
Satanás e do meu próprio coração, que posso dizer? Precisamente o que diz nosso
texto: que Cristo é o Admirável Conselheiro. Ele governa a sua igreja e a seus
cristãos de forma admirável de modo que somos justos, sábio, limpos, fortes,
cheios de vida, filhos de Deus, ainda que diante do mundo e diante seus
próprios olhos pareçam todo o contrário. A que devo me ater porém para vencer a fé aparente? Ao mesmo a que se ativeram os pastores: a Palavra.
O mesmo Cristo procede de
forma sumamente estranha ao que sua própria pessoa se refere; quer se fazer
nosso Rei, e se deita num presépio e nasce de uma pobre virgem que apenas tem com
que lhe envolver. Deveria ter por mãe a uma rainha, e por berço um deslumbrante
palácio- sem dúvida vive como um mendigo. Não é, na verdade, assombroso no seu aspecto pessoal? Por isso precisamos aprender abrir os olhos, como os pastores, e
julgar não segundo a aparência exterior, senão segundo as palavras que foram
ditas sobre essa criancinha. Devo dizer, pois: Considero santos a todos os
crentes, e me considero um verdadeiro santo a mim mesmo, não por minha própria
conduta irrepreensível, senão por causa do batismo, do sacramento da santa ceia,
da palavra de Deus, e de meu Senhor Jesus Cristo em quem eu creio. Então terás
achado a definição correta. Se observo a mim mesmo, sem batismo, santa ceia e a
palavra, não vejo mais que pecado e injustiça, o diabo em pessoa que me
atormenta sem cessar. E se os observo a todos vós desprovidos da santa ceia, do
batismo e da palavra divina, não vejo em vós santidade alguma. Ainda que estais
sentados no templo ouvindo a palavra de Deus e orando, não vos fica nada de
santidade se descontamos a palavra e os sacramentos.
3. Os sinais distintivos da verdadeira igreja de Cristo.
A aparência exterior não é,
pois, o decisivo; decisivo é isto: olha se estás batizado, se ouves com agrado
a pregação da palavra de Deus, se sentes o sincero desejo de receber a santa
ceia. Estes são os sinais que Deus te dá, a isso deves dirigir teu olhar; assim
poderás dizer: vejo em mim claros sinais de que pertenço a igreja Cristã. O
aspecto exterior, em efeito, não basta para te converter num crente de verdade.
Entretanto, onde se prega o evangelho sem falsos agregados humanos, onde
se administram os sacramentos na forma devida e onde cada qual desempenha
fielmente as tarefas próprias de seu ofício ou profissão, ali encontrarás com absoluta
certeza o povo de Deus. Portanto, não te guies pela cor que as coisas têm por
fora, senão pela palavra divina. Se te guias pela aparência exterior, e não
pela palavra, pronto cairás no erro. Por que razão? Pela razão de que
exteriormente não acharás num cristão nada que o distinga de outro homem. Mais
ainda: há incrédulos e pagãos que se comportam mais decorosamente e que
apresentam um aspecto mais honrável que muitos cristãos. Ah, a aparência exterior!
Aí tem sua origem os ímpios e insensatos monges e freiras que queriam criar à
igreja cristã uma imagem orientada no que exteriormente impressiona a vista.
Daí também vem suas cogulas (Túnica de mangas largas e compridas e capuz usada
pelos religiosos de algumas ordens) e tonsuras (é uma cerimônia religiosa em
que o bispo dá um corte no cabelo do ordinando ao conferir-lhe o primeiro grau
de Ordem no clero, chamado também de "prima
tonsura"). “Aqui, no estado
monástico, estão os homens santos” diziam. “Vós que viveis no mundo vos entregais a vãos afazeres e práticas
puramente corporais”. Coisa diabólica é que a máscara que põe certa gente
possa causar tanta impressão no mundo. Eu sei que entre todos vós há apenas dez
que não se deixariam impressionar por mim se eu quisesse fazer gala daquela
santidade que pratiquei nos meus anos de monge. Evidentemente, o batismo e a
santa ceia atraem os olhares muito menos que o hábito e a austeridade de um franciscano.
Este sim tem que jejuar, aquele ao contrário é um simples costureiro. Por isso
é preciso que aprendas a conhecer o que é e como é na realidade a igreja
cristã, e que não te deixes enganar pelas aparências. Uma mulher que faz o que
Deus lhe manda, que está batizada, que ouve o evangelho e o guarda qual luz em
seu coração, que tem seu marido, que dá a luz filhos, que cumpre com suas
tarefas como boa esposa e mãe, essa mulher é uma santa, ainda que aos olhos das
pessoas não pareça. Pois o batismo que recebeu e a fé que tem em seu coração,
são coisas que meus olhos não veem; vejo, ao contrário, que ela anda pela casa,
ocupada no cuidado de seus filhos, e em mil outros afazeres domésticos. Por
isso parece que não há nada de particular naquela mulher. Todavia, se permanece
no evangelho e no trabalho que Deus lhe encomendou, é um membro genuíno da
igreja cristã, não por sua probidade, senão por estar batizada, por ter em seu
coração o evangelho, por ser morada de Cristo. Quem porém tem em conta que essa mulher é uma cristã e uma santa? Entretanto vem uma beguina (de Lambert Le Bèque, fundador no
século XII do primeiro convento destas religiosas. Eram beatas ou merceeiras
que praticavam uma vida ascética em comum, parecida com a monacal, a maior
parte das vezes nos chamados beguinários, na área da atual Bélgica) com sua
cara de vinagre. O que ocorre? A esta a
consideram uma santa, a cujo lado a mulher com marido e filhos e o muito
trabalho não são nada! Assim é como se nosso Senhor convertesse o mundo em um montão
de tontos, incapazes de reconhecer a um cristão. “Igreja cristã” esses são os que receberam o
batismo, que têm um coração cheio de fé, e que levam a vida como homem comum.
Nesse sentido deves considerar a igreja, e por esses sinais conhecê-la. O mundo
ao contrário não a julga dessa maneira, e por isso erra em seu juízo. O mundo
perguntará, por exemplo: Acaso não há também entre os gentios matronas tão respeitáveis
como as que há entre os cristãos? E o que dizer dos tempos de tribulação? Ah, quantos padecimentos! Ah, a quantas perseguições está exposto
um cristão batizado e que confessa sua fé no Senhor! Não parece senão que Deus
lhe houvesse abandonado por completo, e assim o sente às vezes no seu coração.
4. A igreja, desprezada, se consola com a
palavra e os sacramentos.
Desse modo, nosso Deus e
Senhor faz que todos os sábios cheguem a ser néscios, permitindo que a imagem
verdadeira de Sua igreja quase desapareça sob um cúmulo de escândalos. Não obstante,
aquele que é membro dessa igreja pensa: “apesar de o mundo me desprezar e me perseguir, todavia creio em
Cristo, estou batizado e tenho o evangelho; e a esse evangelho, esse batismo e
a esse Cristo lhes ponho em meu coração um valor tão alto que ao seu lado o
mundo inteiro não me parece valer mais que uma farpa”. E isto é bem certo: o evangelho de Cristo que o crente tem em
seu coração possui diante de Deus um poder justificador tão grande que, ainda que
o mundo inteiro estivesse repleto de pecados, todos eles seriam nada mais que
uma gota de água em comparação com a imensidão do mar. Não é pouca coisa se
fixar na palavra de Deus e se ater a ela. Tão grande coisa é, que aquele que o
fizer, tudo o que lhe encerre parecerá como uma partícula de poeira. Assim,
pois, a igreja cristã é santa, apesar do mau aspecto que tem aos lhos do mundo,
e apesar de estar coberta de tribulações e escândalos. E ninguém pode captar inteiramente
a santidade e justiça da igreja, nem ainda o que tem fé, e muito menos se pode sondar
com a perfeita razão humana. Quem quiser conhecer realmente a igreja cristã e a
seus membros, tem que tomar como elementos de juízo a palavra do evangelho, os sacramentos,
a fé e os frutos da fé e do evangelho. E tu mesmo, para comprovar se és santo e
cristão, considera se tens o batismo e o evangelho, se ouves e crês na palavra
de Cristo. Se, logo, manténs puro teu matrimônio, se honras a teu pai e a tua
mãe, etc., o que seja, se obedeces gostosamente ao Senhor, e evitas
gostosamente o que é contrário a sua vontade: esse são então os frutos da tua fé.
Mas se alguma vez dás um
tropeço, isso não te infligirá um dano irreparável. Pensa em teu batismo,
refugia-te no evangelho que te oferece perdão e absolvição, diz a ti mesmo: “Se me ocorrem maus pensamentos,
caí em pecado. Porém fui batizado, tenho a palavra de Deus com sua promessa de
remissão: isso é para mim uma santidade maior que o mundo inteiro com tudo o
que nele há. Cristo é meu mediador cheio de misericórdia, tão misericordioso
que a fúria de todos os diabos que pudessem me aterrorizar não é mais que um
leve lampejo comparado com o fogo de Seu amor, nada mais que uma gota de água comparada
com o mar de suas compaixões. Ele está ao meu lado e me ajuda”. Assim devemos e podemos nos consolar pensando nesse imenso tesouro
que possuímos na palavra e nos sacramentos.
5. Conclusão: Cristo é na verdade o
Admirável Conselheiro
Tudo isso nos ensina por que
Cristo é chamado “Admirável, Conselheiro”: Ele tira de nossa vista e de nosso
pensamento toda a santidade e sabedoria próprias. Toda a santidade, toda
a sabedoria que a igreja cristã possui se embasa na palavra e nos sacramentos.
Se quiseres julgar a igreja segundo seu aspecto exterior, chegarás a um resultado
inteiramente falso, pois verás os cristãos como gente assustada, cheia de
pecados e imperfeições. Mas se consideras os cristãos como gente que foi
batizada, que crê em Cristo e que demonstra sua fé produzindo frutos de amor a
Deus e ao próximo e levando com paciência sua cruz, então teu juízo será
correto. Pois esse é o distintivo em que se há de conhecer a igreja de Cristo.
Nós ao contrário, os que somos membro da igreja, devemos ter o batismo e a palavra
em alta estima ao ponto que todos os bens e tesouros do mundo nos pareçam nada
comparados com eles. Fazendo isso reconhecemos corretamente a igreja cristã e
podemos consolar a nos mesmos dizendo: “Em minha própria pessoa sou um pecador, mas em Cristo, no batismo,
na palavra, sou santo”. Atenhamos, portanto, para
estes nomes: “Admirável, Conselheiro”. Então podemos enfrentar os falsos mestres que virão. Pois não cabe
dúvida de que depois dos monges de antigamente com sua falsa imagem da igreja
de Cristo, virão outros, não menos perniciosos. O mundo não pode ir contra o
seu costume: insistirá em querer retratar a igreja cristã segundo sua aparência
exterior. Todavia, o único retrato fiel da igreja é o que acabo de pintar-lhes:
o retrato em que se destacam o evangelho, os sacramentos, a fé e os frutos da
fé. O batismo é a luminosa cor branca, a palavra e a fé são a gloriosa cor azul
do céu e os frutos do evangelho e da fé são as diversas outras cores que
distinguem os cristãos, cada qual em seu estado e profissão. Amém!
Adaptado pelo Rev. MST
Edson Ronaldo Tressmann
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